25 janeiro, 2010

A Universidade e a relação com a Cultura Popular – Reflexões

Os conhecimentos acumulados pela humanidade ao longo dos milhares de anos indicam um lento caminhar em busca do novo, com base no já conquistado.
A cultura popular e a erudita encerram um leque de variedades e amplitudes que ensejaram o aparecimento de instrumentos sistêmicos para registrar, sistematizar, analisar e divulgar suas especificidades.

A organização de espaços especializados para estudar a dinâmica sociocultural da humanidade, em seus desdobramentos nos diversos campos das atividades humanas fez com que especialistas preocupados com temáticas afins se reunissem para sistematizar e divulgar os conhecimentos, permitindo o aparecimento das universidades.

Ao longo dos séculos, as universidades estiveram a serviço dos poderes constituídos, seja do Estado, Igrejas ou outras instituições, sendo utilizadas para transmitir ou contestar ideologias e saberes diversos, com reflexos diretos no “saber ser e saber fazer” das sociedades, portanto produzindo efeitos nas organizações sociais.

O volume de informações e a amplitude dos estudos processados nas universidades, sob as influencias de regimes políticos e concepções ideológicas diversas, produziram nos últimos dois séculos uma verdadeira revolução nos conhecimentos disponibilizados à sociedade, com reflexo direto em suas posturas frente ao novo.

As universidades chegaram ao terceiro milênio da Era Cristã detendo um volume de conhecimentos e de especialistas, como jamais ocorreu ao longo da história, interferindo como nunca nos destinos da humanidade.

As ações localizadas das universidades perpassam campos de conhecimentos diversos, cada vez mais especializados, que propõem mudanças de comportamentos entre a população, que frente ao novo produzem conflitos frente aos padrões tradicionais, em escala diferenciada para cada situação.

A cultura tanto erudita como popular, sem dúvida, estão entre as áreas do saber mais afetadas pelas mudanças rápidas, pois encerram a força do tradicional, da estabilidade, da resistência, em que as experiências acumuladas pela sociedade são bússolas orientadoras frente ao novo.

Teoricamente, os especialistas universitários são os melhores preparados para processar os estudos e orientações à sociedade em sua ânsia de saber e dignidade. São olhados com admiração e a certa distância pelo povo, que vê no “doutor” alguém especial, além de seu mundo.

Como professor universitário, oriundo de comunidade de economia de subsistência fui inúmeras vezes confrontado pela dualidade do saber universitário frente o saber popular, vivenciando um conflito pessoal de postura, não pela maneira de ser, mas pelo conjunto social em que estas relações se realizavam.

A vivencia enquanto professor universitário e pesquisador de cultura popular por 30 anos é o ponto de partida, para estabelecer algumas reflexões no tocante “as relação da universidade e a cultura, notadamente a cultura popular”, em que procurou-se criar pontes, num meio voltado quase que exclusivamente para si próprio, em que os professores universitários eram figuras especiais, distanciados do povo, refletindo a “sociedade dos bacharéis”, em que o título vale mais que a multiplicação dos conhecimentos.

Ao ingressar na universidade no ano de 1970 levava uma enorme carga de vivência da cultura popular de base açoriana, sem saber que estes valores eram desta origem. Eram valores vistos como “atrasados”, fora de época, que deveriam ser estudados para entender “as sobrevivências culturais do litoral catarinense”, frente ao turismo emergente, com presença de indivíduos com padrões financeiros e culturais diferenciados, que aqui começavam a veranear, se estabelecer e precisavam de maiores informações sobre os hábitos e costumes dos habitantes típicos da região.

Foi interessante e ao mesmo tempo desafiador descobrir que os valores culturais que professava estavam enquadrados como “sobrevivências culturais”, pelos professores universitários, entre os quais alguns apaixonados em registrar tais práticas culturais, sem aperceber-se que esta ação por si só não bastava para impedir a desagregação cultural regional frente ao novo que chegava sob várias formas.

Inspirado pelo grande historiador Walter Fernando Piazza, decidi, ainda como estudante, que lutaria para devolver o “ao povo de origem açoriana do litoral catarinense o orgulho por suas origens culturais”, estudando, pesquisando, sistematizando e devolvendo ao próprio povo litorâneo, ao longo de mais de 25 anos os conhecimentos culturais colhidos junto a fontes escritas e pesquisas de campo, para que pudessem transmiti-los as gerações mais novas, criando fortes elos culturais entre os jovens e seus avos; iniciando uma verdadeira cruzada que está em pleno curso. Despertou-se o interesse, conseguindo agrupar em torno desta bandeira, centenas de pessoas abnegadas, sejam universitários ou o homem do povo, detentores dos conhecimentos.

Este quadro foi desenhado a partir da Universidade Federal de Santa Catarina que estava nos anos setenta em fase de implantação, com muitos professores vindos principalmente do Rio Grande do Sul. Estes profissionais refletiam traços culturais diferenciados da cultura regional da grande Florianópolis; portanto, sem vivência da cultura local, realizando belos discursos acadêmicos compatíveis com o meio universitário, mas distanciados da comunidade do entorno da universidade, que não viam. Muitos deles verdadeiros “papagaios de piratas”, transmitindo conteúdos livrescos, e discursos políticos, sem qualquer comprometimento pessoal em termos de envolvimento com os princípios que pregavam, tanto por não realizarem pesquisas que resultassem em produção de conhecimentos, como por estarem de costas para a comunidade. Bons de discursos, verdadeiros teóricos marxistas, que viviam como elite, pregando a velha máxima “faça o que mando, não faça o que eu faço”; parecido com discurso político atual.

Foi uma luta difícil convencer esta “elite intelectual universitária” de que a preservação e reoxigenação da cultura popular do litoral catarinense, em acelerado processo de aculturação, só poderia ser “sacudida” na direção de despertar o orgulho esquecido, se houvesse um efetivo envolvimento do meio acadêmico com a comunidade litorânea. E os anos foram passando.

No ano de 1985, em pleno período de valorização da “cultura açoriana”, por parte de pesquisadores abnegados, como Walter F. Piazza, Nereu do Valle Pereira, Osvaldo Ferreira de Mello, e outros ligados a UFSC e ao Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina, propusemos a criação do “Núcleo de Estudos Açorianos da Universidade Federal de Santa Catarina”, como braço universitário para implementar políticas articuladas com diversas instituições e comunidades, como forma de gerar ações afetivas que levassem a troca de experiências entre os teóricos universitários e os detentores da cultura popular, numa ação de valorização e revitalização da cultura de base açoriana, marca maior do litoral catarinense. A proposta foi “engavetada” pelos que vinham realizando estes estudos acadêmicos, ficando por mais alguns anos sem qualquer ação efetiva universidade - comunidade, com mutua participação e vivência dos resultados. Continuando a prioridade pelos importantes encontros acadêmicos.

Nas universidades, como em outras instituições, tem o momento certo para avançar as idéias transformadoras, pois dificilmente alguém cede espaço às novas lideranças, que só conseguem romper com o modelo vigente, onde “os figurões” procuram manter o controle do processo, se existir condições externas e mesmo interna a universidade, notadamente lideranças, que se proponham a assumir o ônus do novo.

O momento favorável, associado a uma nova elite pensante, muito deles sem vínculos com a universidade, oportunizou que fosse impulsionado, nos idos de 1993, o processo de interação universidade-comunidade que já se mantém por 16 anos e que ao longo do período já provocou mudanças de atitudes e posturas frente a cultura tradicional, tanto por parte da universidade, como por parte de importantes segmentos da comunidade que não valorizavam a cultura tradicional.

Esta ação cultural integrada, envolvendo professores universitários, poderes públicos diversos, como prefeituras, fundações, grupos folclóricos, pesquisadores, sem remuneração adicional, perseguindo objetivos a longo prazo, de valorização da cultura popular é um caso raro no Brasil, que prova cabalmente que na hora em que a universidade ultrapassa seus próprios muros para interagir com outros segmentos sociais produz maravilhas, com custos ínfimos.

Os momentos são únicos para cada ação bem sucedida. Assim, no ano de 1993 vi operacionalizada, sob a liderança deste que vos escreve, a criação do NEA, sendo desengavetado aquela proposta ainda escrita em máquina de escrever, que fazia oito anos aguardava o momento oportuno para surgir forte.

Com o apoio do magnífico reitor Diomário Queiroz e do pro-reitor de cultura e extensão Julio Wigger, foi criado pelo Conselho de Ensino e Pesquisa da UFSC, através de portaria o Núcleo de Estudos Açorianos diretamente vinculado a Pró Reitoria de Pesquisa e Extensão, com a incumbência de articular interna e externamente a política em prol da cultura de bse açoriana no litoral catarinense. Foi uma ação corajosa, lideradas por jovens pesquisadores: Vilson Francisco de Farias, Joe Cletson Alves, Gelci Coelho, Francisco do Valle Pereira, Sileide Lisboa, Acir Osmar de Oliveira, Rute Nunes, Ana Lucia Coutinho, Mariza Amorim, Jone César de Araújo e outros.

Foi um avanço na área de extensão universitária da UFSC, tornando o NEA o braço articulador e formulador das políticas e ações em prol da cultura de base açoriana do litoral catarinense, formuladas e executadas através de seu conselho deliberativo em que participavam 5 universidades: UFSC, UDESC, UNIVALE, UNISUL, UNESC; 27 municípios: Florianópolis, São José, Palhoça, Paulo Lopes, Santo Amaro da Imperatriz, Garopaba, Imbituba, Imarui, Tubarão, Jaguaruna, Içara, Criciúma, Ararangua, Sombrio, Biguaçu, Governador Celso Ramos, Tijucas, Porto Belo, Bombinhas, Itapema, Camboriu, Balneário Camboriu, Itajaí, Penha, Barra Velha, Araquari, São Francisco do Sul, e diversos outros órgãos: SANTUR,IHGSC, Arquivo Público; que foi ampliado, sendo hoje integrado por mais de 50 instituições.

Este quadro presente mostra que instituições sérias podem manter-se por muito tempo em sua missão, mesmo sem oferecer consultorias pagas aos seus integrantes.

Com resultado deste trabalho articulado conseguiu-se:

1. Devolver ao povo litorâneo o orgulho por suas origens culturais,
que fazem questão de dizer que são açorianos;

2. Organizar um corredor turístico cultural de base açoriana que
envolve que todo o litoral de Santa Catarina, ao longo dos 500 quilômetros de costa, dezenas de municípios;

3. Consolidar a AÇOR – Festa da Cultura Açoriana de Santa
Catarina, rotativa ao longo do litoral, que esta na 16ª edição sem repetir município;

4. Realizar o mapeamento da Cultura de base açoriana do litoral
catarinense, em diversos municípios;

5. Possilitar a cooperação entre instituições e pesquisadores em
prol do estudo e promoção dos valores culturais do litoral catarinense.


Surge a clássica pergunta: Este é o papel da universidade?

Entende-se que sim, pois a universidade do século XXI terá que refletir as novas tendências do conhecimento compartilhado, proporcionando a tranversalidade dos saberes sem fronteiras geográficas, com as informações sendo disponibilizadas em tempo real, mesmo os indivíduos estando distantes milhares de quilômetros, favorecidos pelas redes de computadores e outros veículos de comunicações, que poderão estar interagindo. Neste foco, as ações articuladas, entre universidade e comunidade, em torno da cultura tradicional permitem que ambos os parceiros se revitalizem e superem as lacunas de comunicações tradicionalmente existentes entre estes entes sociais, contribuindo na manutenção dos valores tradicionais sem fechar a porta para os novos conhecimentos, também necessários.

Hoje, as universidades, por força da disputa do mercado e melhor adequação a realidade procuram romper os muros da vaidade, da superioridade sem contestação, mergulhando de forma mais consciente no caudal social do entorno, procurando articular-se com a realidade sociocultural que a envolve.

O tempo em que as universidades eram templos intocáveis do saber, com seus professores encastelados, já não encontra eco, principalmente no Brasil, exigindo dos profissionais a elas ligadas, flexibilidade e maior comprometimento social, notadamente no campo das ciências humanas e sociais.

Os estereiótipos sociais continuam presentes, estimulados por valores ideológicos e culturais diferentes, que teimam em não respeitar o outro lado, dificultando a convivência harmoniosa entre povos e mesmo comunidades menores.

As universidade precisam ousar um pouco mais, aplicando em grau ampliado a bem sucedida experiência do Núcleo de Estudos Açorianos da Universidade Federal de Santa Catarina, como forma de se harmonizar com os novos postulados de cooperação e integração de informações e ações que marcam o início do terceiro milênio.

A extensão universitária deve ser transformada em uma mão dupla, para permitir a integração da universidade no cotidiano das comunidades, prestando serviços de extensão até mesmo remunerados, não como fim em si mesmo, mas como um reoxigenar da própria instituição.

Pessoalmente tenho orgulho de ter contribuído no despertar do “sentimento de ser de origem açoriana”, que hoje existe entre o povo litorâneo, que como eu, não conhecia a sua origem étnico-cultural, cuja cruzada iniciou-se nos anos setenta.

Missão cumprida. Ainda não, pois tem muito por fazer, agora focado no Sul do Brasil, onde tenho a honra de esta executado O “Mapeamento da cultura popular, dos monumentos: natural-paisagísticos, natural-cultural, histórico-arquitetônico e de infraestrutura de apoio ao turismo, voltado a produção de mapas temáticos e alimentação de um banco de dados/site; a partir do “Modelo Sistemico/ fichas técnicas de mapeamento cultural, que a pesquisa aplicada junto as comunidades n permitiu elaborar ao longo dos últimos 25 anos. Sem perder o foco de professor academico, tivemos a coragem e desprendimento de agirmos como pesquisador e animador cultural junto as comunidades.

É preciso ousar, com sabedoria e paciência para os frutos serem colhidos no tempo certo; embora o novo esteja sempre a nos pressionar por ações imediatistas. Planejar em processo interativo permitirá respostas mais próximas do desejado, pois a dinâmica social esta em permanente mudança.

O tempo não é um fim em si mesmo, mas uma referencia que permite perceber o encadeamento da história, enquanto produção humana.